Costura de Texto por Maria Onice Esteves
D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como “uma senhora modelo”. […]. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas[…],recolhida e séria. Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha […]. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes. A casa, interiormente, parecia lúgubre. […]Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste. […] E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação. […] Não amava o marido, decerto[…] O Coutinho, por morte do pai, ficara rico; e ela […] ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. […] Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face[…]. Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra consoladora, […] feliz em ser boa. […]Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata […] Tais ocupações bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas […]; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à família, a não ser a do Dr. Abílio — que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados: “É uma fada! É uma fada!... “
Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião, que lhe anunciava que […] ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido da Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. […] Adrião era um romancista: e o seu último livro, Madalena, […] consagrara-o como um mestre[…]
D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário. […]Adrião chegou e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se: tinha já o quarto do hóspede preparado […] Adrião porém recusou: […] “o que faço é vir cá jantar […]” Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, […] aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples […]. Nem formoso era […]. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. […] Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou […] hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila […]...o que ele desejava era vendê-la. Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil . […]Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administradora de primeira ordem. “ Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço, deixa-a a ela!...”
[…]No outro dia foram ver a fazenda. […] Partiram a pé. Ao princípio, acanhada […] a pobre senhora caminhava […] com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos […]alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. […] E a conversa de Adrião foi-a lentamente acostumando à sua presença. Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos […] Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença... […] No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria — que falou da paisagem...
“Já viu o moinho?” — perguntou-lhe ela.
“Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima”.
[…]Combinaram logo ir visitar esse recanto[…]
Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã punha entre eles como que um interesse comum. […]
Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do tio André, impressionado, interessado por aquela criatura tão triste e tão doce. […] Achava absurdo e infame fazer a corte à prima... Mas involuntariamente pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz[…]
O passeio ao moinho foi encantador. […] Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, […] e ali ficaram um momento calados[…] Adrião via-a de perfil, um pouco curvada[…]: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, duma linha tão pura. […] O silêncio dos campos em redor isolava-os - e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. […] Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.
Ficar aqui? Para quê? — perguntou ela, sorrindo.
Para quê? Para isto, para estar sempre ao pé de si...
Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo:
Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia... Isto fê-la rir
E eu venho ajudá-lo, primo!
Vem? — exclamou ele. — Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso, nós aqui ambos no moinho. […]
Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela idéia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura […] E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, dum só beijo profundo e interminável. […] Era assim tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:
É malfeito... É malfeito...
Ele mesmo estava tão perturbado - que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam ambos calados para a vila.
À noite foi à casa dela: encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malva as feridas que ele tinha na perna. E então, pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe...
A venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus[…] Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela escondendo a face dos pequenos, olhando abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura...
Amava-o. […] Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da natureza que atravessava, sùbitamente, a sua alcova abafada: e ela respirava-a deliciosamente... Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno, duma ternura varonil e forte, para a cativar... Esse amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta idéia, esta visão: Se ele fosse meu marido! […] Depois ele deu-lhe aquele beijo no moinho. E partira!
Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. […] Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como desgraça excepcional […] Quando se acabará isto?
[…] Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. […] Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara, e morrera dum abandono. […] A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro[…] Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. […] Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...
O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela.[…] Estava uma histérica. Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...
[…]A Santa tornava-se Vênus. E o romanticismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços: e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica. Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe — para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.
[…]A Santa tornava-se Vênus. E o romanticismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços: e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica. Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe — para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.
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