quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O Lopo (Miguel Torga)


(Costura de Texto: Maria Onice Esteves)
- Perdeste - anunciou sem rodeios o Dr. Canavarro […].
- Oh, senhor doutor, nem a brincar! […]
O Lopo, que desde as primeiras palavras estacara à entrada  do  escritório, mordeu  o  beiço  por  debaixo  do bigode  espesso,  pôs­se a desandar o chapéu na mão e ficou assim  um pedaço. […]
­ - Então perdi?! ­ É como dizes. ­ Custas e tudo?[…] ­ Bem, pronto,  não  se fala mais nisso. […] O outro  já  saberá?
- Não. A notícia só lhe deve chegar de aqui a dois ou três dias. […]
- Então dou-­lha eu...[…]

Era Janeiro e a manhã parecia de Maio. […]Pelas ruas a cabo, gente de sobretudo passava apressada.
- Vamos comer alguma coisa? ­ propôs o Marrau, que o esperava no estanque do Castro.
- Pode ser. Nada na figura e nos modos do Lopo denunciava o desespero que o lavrava.
- Em casa da Areias?
- Está bem.
- Se houvesse tripas, é que era! ­ lembrou o outro, guloso. […]
Disseram até logo à saída da porta […].  Pelo caminho, duas léguas bem medidas de serras e de carvalhais, nem o ar lavado das fragas nem  a  serena  calma de  tudo conseguiram  arredar o Lopo das suas cogitações.  […] Mas só por  dentro é que  ia  assim.  Por  fora, respondeu a todas as pessoas  que  encontrou e  o  salvaram,  e em  Lobrigos,  seco  dos finnos da raia, bebeu um quartilho, sem que o taberneiro desse conta de qualquer nuvem  a  turvar­lhe  o  semblante.     
[…] Até Carvas foi o mesmo quebra ­cabeças. Os montes iam passando, o rio Verdeiro  cachoou­lhe  nos ouvidos,  levantaram­se perdizes a dois metros., e o Lopo sempre a andar, calado e sério. No Caleirão  deixou  a estrada  e meteu  pelas matas.  Depois desandou à esquerda, […]  e  chegou  à entrada da mina que lhe fora roubada.
Da boca  escura que abrira na fraga,  a picareta e a dinamite,  Deus sabe com quanto suor, saía um bafo quente  como  o  de  quem respira. O cascalho, o saibro e o lodo que arrancara  às entranhas da serra tinham ainda a  cor e o cheiro  de  carne  dilacerada. E o  rego de água que, cauteloso, saía da­escuridão, e a cantar se punha­a correr  pela encosta abaixo,  era como que uma veia aberta do seu próprio corpo. Religiosamente, debruçou­se sobre o regato,  meteu  nele  a  mão calosa, encheu­a, e deixou cair em cascata a liquefeita  frescura de três meses de trabalho. […] E  ergueu­se.  Se  aquela  visita íntima e secreta o comovera, estava de novo sereno e senhor de si. […] Em casa...[…]
- E então? Que disse o advogado?
- Ainda não sabe nada. 
A tarde desceu serena, a esfriar de hora a hora e a levedar um segredo profundo, calmo, de toda a natureza. […]
Ao romper do dia, como habitualmente, ergueu­se ele primeiro. Lavou­se, tirou da arca a costumada côdea de pão,  matou o bicho com aguardente, e foi à sala buscar a arma.
­- Vou dar uma volta. […] Parece que anda uma lebre na Alcaria...
Ao vê­lo atravessar o quinteiro e seguir pela quelha abaixo sem assobiar ao cão, a Rita estranhou.  Mas não fez mais  caso. Embora o dia começasse apenas a clarear, mostrava já o que viria a ser: ainda mais escarolado de que o anterior  e  mais  frio. […] Não havia memória dum inverno tão seco e tão gelado. Nas poças de água o codo  era  de palmo. […]  Caminhava ligeiro, atento, com a espingarda pendurada ao ombro pela bandoleira,  de  canos voltados para o chão. Não queria ser visto e em Carvas a vida principiava cedo. Felizmente, quando a manhã se abriu de todo […] já ele se distanciara da zona de perigo. Situada no termo  da  povoação, a quinta dos Balaus era uma propriedade vedada,  onde  o Sr. Casimiro, o homem que  lhe tinha roubado  nos  tribunais  a posse da mina, mourejava de sol a sol.  Na ocasião, podava à beira da estrada a vinha nova, toda  enxertada  de moscatel,  donde  saíam dornas e dornas de uvas, no Setembro. Rico e manhoso, movia montanhas a cavar o dia inteiro, sem ninguém  descortinar  como conseguia  ter Portugal nas mãos quase sem sair da terra.
Do alto da Silveirinha, o Lopo, lobrigou­lhe o vulto ao fundo, debruçado, maciço, ainda mal desenhado na penumbra  da  manhã. Fez de conta que nada e continuou a caminhar mergulhado nos seus pensamentos. […] Chegou­se adiante,  ao portão, espreitou por entre as grades,  e calculou exactamente  a que sítio do  caminho  vinha ter  uma  perpendicular  tirada do sujeito.  […] Agachado e embrulhado no varino,  a crucificar o presente em nome do futuro, o senhor  Casimiro  lá  continuava  no seu afã de impor ao sono das cepas um despertar fecundo.  […] E foi preciso o Lopo gritar duas vezes  para  que sentisse ruído e se erguesse a ver o que era.
- Sou eu ­ disse­-lhe então o Lopo, direito em cima do muro, com ele já no ponto de mira. ­ Sou eu  que  lhe  trouxe  este  recado da Vila...
O tiro partiu, o podador caiu de bruços sobre a videira, e o sol por detrás dos montes  começou  a  tentar  encher  o  dia  de  inverno de uma luz doirada de primavera. O  Lopo,  então,  saltou  ao  caminho,  regressou a casa pelo Lenteiro,  depois de  atirar a caçadeira a um poço, e falou assim à mulher:

A questão está perdida e o ladrão já foi prestar contas a Deus. Sigo agora para  Fermentelos,  a  ver  se  o  Grilo  me  arranja dinheiro e passo a fronteira ainda  esta  noite.  Embarco  em  Vigo.  Não  levo nada, para ir mais leve e ninguém  desconfiar. Tu ficas aqui,  muito  calada,  até  eu  dar notícias. Adeus, e não chores.

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