- Oh, senhor doutor, nem a brincar! […]
O Lopo, que desde as primeiras palavras estacara à entrada do escritório, mordeu o beiço por debaixo do bigode espesso, pôsse a desandar o chapéu na mão e ficou assim um pedaço. […]
- Então perdi?! É como dizes. Custas e tudo?[…] Bem, pronto, não se fala mais nisso. […] O outro já saberá?
- Não. A notícia só lhe deve chegar de aqui a dois ou três dias. […]
- Então dou-lha eu...[…]
Era Janeiro e a manhã parecia de Maio. […]Pelas ruas a cabo, gente de sobretudo passava apressada.
- Vamos comer alguma coisa? propôs o Marrau, que o esperava no estanque do Castro.
- Pode ser. Nada na figura e nos modos do Lopo denunciava o desespero que o lavrava.
- Em casa da Areias?
- Está bem.
- Se houvesse tripas, é que era! lembrou o outro, guloso. […]
Disseram até logo à saída da porta […]. Pelo caminho, duas léguas bem medidas de serras e de carvalhais, nem o ar lavado das fragas nem a serena calma de tudo conseguiram arredar o Lopo das suas cogitações. […] Mas só por dentro é que ia assim. Por fora, respondeu a todas as pessoas que encontrou e o salvaram, e em Lobrigos, seco dos finnos da raia, bebeu um quartilho, sem que o taberneiro desse conta de qualquer nuvem a turvarlhe o semblante.
[…] Até Carvas foi o mesmo quebra cabeças. Os montes iam passando, o rio Verdeiro cachooulhe nos ouvidos, levantaramse perdizes a dois metros., e o Lopo sempre a andar, calado e sério. No Caleirão deixou a estrada e meteu pelas matas. Depois desandou à esquerda, […] e chegou à entrada da mina que lhe fora roubada.
Da boca escura que abrira na fraga, a picareta e a dinamite, Deus sabe com quanto suor, saía um bafo quente como o de quem respira. O cascalho, o saibro e o lodo que arrancara às entranhas da serra tinham ainda a cor e o cheiro de carne dilacerada. E o rego de água que, cauteloso, saía daescuridão, e a cantar se punhaa correr pela encosta abaixo, era como que uma veia aberta do seu próprio corpo. Religiosamente, debruçouse sobre o regato, meteu nele a mão calosa, encheua, e deixou cair em cascata a liquefeita frescura de três meses de trabalho. […] E ergueuse. Se aquela visita íntima e secreta o comovera, estava de novo sereno e senhor de si. […] Em casa...[…]
- E então? Que disse o advogado?
- Ainda não sabe nada.
A tarde desceu serena, a esfriar de hora a hora e a levedar um segredo profundo, calmo, de toda a natureza. […]
Ao romper do dia, como habitualmente, ergueuse ele primeiro. Lavouse, tirou da arca a costumada côdea de pão, matou o bicho com aguardente, e foi à sala buscar a arma.
- Vou dar uma volta. […] Parece que anda uma lebre na Alcaria...
Ao vêlo atravessar o quinteiro e seguir pela quelha abaixo sem assobiar ao cão, a Rita estranhou. Mas não fez mais caso. Embora o dia começasse apenas a clarear, mostrava já o que viria a ser: ainda mais escarolado de que o anterior e mais frio. […] Não havia memória dum inverno tão seco e tão gelado. Nas poças de água o codo era de palmo. […] Caminhava ligeiro, atento, com a espingarda pendurada ao ombro pela bandoleira, de canos voltados para o chão. Não queria ser visto e em Carvas a vida principiava cedo. Felizmente, quando a manhã se abriu de todo […] já ele se distanciara da zona de perigo. Situada no termo da povoação, a quinta dos Balaus era uma propriedade vedada, onde o Sr. Casimiro, o homem que lhe tinha roubado nos tribunais a posse da mina, mourejava de sol a sol. Na ocasião, podava à beira da estrada a vinha nova, toda enxertada de moscatel, donde saíam dornas e dornas de uvas, no Setembro. Rico e manhoso, movia montanhas a cavar o dia inteiro, sem ninguém descortinar como conseguia ter Portugal nas mãos quase sem sair da terra.
Do alto da Silveirinha, o Lopo, lobrigoulhe o vulto ao fundo, debruçado, maciço, ainda mal desenhado na penumbra da manhã. Fez de conta que nada e continuou a caminhar mergulhado nos seus pensamentos. […] Chegouse adiante, ao portão, espreitou por entre as grades, e calculou exactamente a que sítio do caminho vinha ter uma perpendicular tirada do sujeito. […] Agachado e embrulhado no varino, a crucificar o presente em nome do futuro, o senhor Casimiro lá continuava no seu afã de impor ao sono das cepas um despertar fecundo. […] E foi preciso o Lopo gritar duas vezes para que sentisse ruído e se erguesse a ver o que era.
- Sou eu disse-lhe então o Lopo, direito em cima do muro, com ele já no ponto de mira. Sou eu que lhe trouxe este recado da Vila...
O tiro partiu, o podador caiu de bruços sobre a videira, e o sol por detrás dos montes começou a tentar encher o dia de inverno de uma luz doirada de primavera. O Lopo, então, saltou ao caminho, regressou a casa pelo Lenteiro, depois de atirar a caçadeira a um poço, e falou assim à mulher:
- A questão está perdida e o ladrão já foi prestar contas a Deus. Sigo agora para Fermentelos, a ver se o Grilo me arranja dinheiro e passo a fronteira ainda esta noite. Embarco em Vigo. Não levo nada, para ir mais leve e ninguém desconfiar. Tu ficas aqui, muito calada, até eu dar notícias. Adeus, e não chores.
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